16 de mar. de 2007

[Textos] Veja colonial e racista - A desinformação veiculada pela Revista Veja sobre a Terra Indígena Morro dos Cavalos/SC

Segue o textos sobre a polêmica criada pela revista veja (há cópias da reportagem original no calcs)...

Vagner Boni
Estudante de Ciências Sociais
Bolsista do Laboratório de Etnologia Indígena - LEI-
Museu Universitário/UFSC

Veja colonial e racista
A desinformação veiculada pela Revista Veja sobre a Terra Indígena Morro dos Cavalos – SC

O processo de reconhecimento oficial da Terra Indígena Guarani Morro dos Cavalos, localizada no estado de Santa Catarina, vem tornar-se caso exemplar das dimensões alcançadas pelos conflitos que têm obstado a regularização fundiária das Terras Indígenas com o recente agravamento da violência racista fomentada contra os índios, e as injúrias e insultos propagados contra antropólogos e instituições especializadas. O crescente agravamento deste caso revela-se
diretamente proporcional à inoperância e à protelação dos atos conclusivos do governo federal para a regularização das Terras indígenas no país.

Devemos ressaltar inicialmente que esta Terra Indígena Guarani foi identificada e delimitada com a publicação do Despacho do presidente da FUNAI nº 201 em 17 de novembro de 2002 no Diário Oficial da União (e no Diário Oficial do Estado em 2003), aprovando os estudos realizados pelo Grupo de Trabalho instituído pelo órgão indigenista oficial em outubro de 2001, Apresentados no "Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos".

Posteriormente à identificação e à delimitação, o processo de reconhecimento oficial da Terra Indígena Guarani Morro dos Cavalos foi submetido aos procedimentos do contraditório, conforme estabelece o Decreto nº 1.775/96. Terminado o prazo estipulado de noventa dias para
a apresentação de contestações, a Funai encaminhou, em outubro de 2003, o processo em pauta ao Ministério da Justiça, com a devida refutação fundamentada às manifestações apresentadas por particulares e por órgãos do governo estadual de Santa Catarina. A Consultoria
Jurídica do Ministério da Justiça expediu, então, parecer conclusivo favorável à publicação da Portaria Ministerial Declaratória da Terra Indígena Morro dos Cavalos, compreendendo 1.988 hectares, conforme os limites definidos no Relatório Circunstanciado de Identificação e
Delimitação.
Mesmo após o término do prazo estipulado legalmente para a apresentação e a análise de contestações por parte de eventuais atingidos, o Ministro da Justiça, de modo inexplicavelmente
extemporâneo, e sem qualquer alegação técnica ou administrativa, cedeu às gestões entabuladas pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina e remeteu, de forma arbitrária, o processo de volta à FUNAI.
Desde 2002 as comunidades Guarani têm solicitado reiteradas vezes ao Ministro da Justiça providências urgentes para o reconhecimento da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em razão das pressões e restrições sofridas. Dado o fato incontestável de os trâmites administrativos
constituintes do processo para o reconhecimento oficial da TI Morro dos Cavalos haverem sido cumpridos, atendendo plenamente os requisitos legais, eis que os mesmos representantes de interesses particulares e do governo estadual contrários à demarcação da Terra Indígena, cujos
pleitos já tinham sido refutados formalmente na fase do contraditório,
pretendem agora barrar politicamente a ação governamental e reverter o processo de regularização fundiária com o recurso pelo qual tentam forjar o desvirtuamento de uma acórdão emitido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em maio de 2005. Tal acórdão dispõe sobre as
alternativas técnicas para a duplicação da BR 101 que atravessa a TI, determinando ao DNIT e à FUNAI a realização de estudos específicos para viabilizar a construção de 2 túneis com menor custo e menor impacto à comunidade indígena.

Entre as diversas investidas contrárias a demarcação desta TI, a matéria veiculada pela Revista Veja (edição 1999 de 14 de março de 2007) intitulada "Made in Paraguai" é a mais perniciosa pois multiplicada em escala de propaganda massiva, desinformando eventuais leitores pelo país afora. Reações favoráveis e indignação surgirão, infundidas, infelizmente, com base em mentiras grosseiras covardemente alardeadas.
Não cabe aqui responder às investidas desqualificadas do repórter.
Importa apenas, neste momento, informar sobre o desencadeamento dos fatos que antecedem tal publicação. No final do mês de fevereiro de 2007, um repórter da Revista Veja remeteu, via e-mail, uma série de questões tendenciosas, baseadas em informações e documentos deturpados, apresentados adiante, à coordenadora do GT de Identificação e Delimitação da TI Morro dos
Cavalos, Maria Inês Ladeira antropóloga do CTI – Centro de Trabalho Indigenista.
Como se pode constatar, a matéria veiculada na revista superou as piores expectativas possíveis, em todos os sentidos: má qualidade, má fé, deturpação inescrupulosa de fontes, preconceitos raciais e étnicos, além de falsidade deliberada em imputar à antropóloga e coordenadora do GT de Identificação da Terras Indígena, a autoria de atos e afirmações inverídicos. O mais grotesco, porém, se não fosse trágico, é o oportunismo do autor, ao tentar tirar proveito da crítica
situação fundiária dos Guarani kaiová no MS (que vivem na região de fronteira com o Paraguai), contrapondo-os aos Guarani Mbya e Nhandéva, e a outros povos indígenas citados na matéria. Tal oportunismo está explícito na chamada do artigo: "A Funai tenta demarcar área de Santa
Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome".


CTI – CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA
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Seguem cópias do e-mail enviado pelo repórter à antropóloga do CTI e de sua resposta:

Prezada antropóloga Maria Inês Ladeira:
Estou fazendo uma reportagem sobre a demarcação da TI Morro dos Cavalos (SC). Como o relatório circunstanciado/laudo antropológico que norteia o processo é de sua autoria, peço-lhe que, por favor, me responda às seguintes questões:
1. Baseada em que a senhora afirma que a região da Serra do Tabuleiro, especificamente o Morro dos Cavalos é território original dos Mbyá? A historiografia registra que os guarani que habitaram a costa de Santa Catarina foram os Carijó, os quais tinham características bem
distintas dos Mbyá e foram extintos no final do século XVII...
2. A senhora afirma em seu relatório que aquela região é tradicionalmente ocupada pelos Mbyá. Mas estive lá e os indígenas mais antigos me disseram que só mudaram-se para lá, vindos do Paraguai ou da Argentina, no início da década de 1990, estimulados por antropólogos. Assim sendo, sua proposta de criação de uma TI para os Mbyá não vai contra o artigo 231 da Constituição Federal, o qual exige, entre outras coisas, que, para ser declarada indígena, a área
tem que necessariamente ser habitada "tradicionalmente" pela etnia em questão?
3. Não é um contrasenso colocar os indígenas em um local tão acidentado como o Morro dos Cavalos, onde eles não têm sequer condições para plantar e/ou fazer criações? O próprio cacique da tribo, o argentino Artur Benites, me garantiu que tão logo o DNIT libere os recursos referentes às "medidas compensatórias", eles vão comprar terras em outro lugar, pois ali não dá para sobreviver.
4. Acórdão do Tribunal de Contas da União critica a atuação dos antropólogos que fizeram laudos antropológicos referentes à TI Morro dos Cavalos, inclusive a senhora. Diz, por exemplo: "(...) o que se vê no EIA/Rima (e em outros textos sobre a ocupação da área) é uma grande
lacuna de matérias de conhecimento. E essa falta de matéria de conhecimento foi suprida pelos antropólogos com matéria de fé (...)".
Orienta também o DNIT a utilizar "profissionais ou expertos isentos e não ligados à defesa dos interesses daquelas comunidades". O que a senhora a tem a dizer sobre isto?
5. A senhora não acha um precedente perigoso entregar oficialmente terras a indígenas originários de outros países? Pelas informações que temos, várias outras famílias de Mbyá têm se mobilizado para deixar o Paraguai e mesmo Missiones, na Argentina, estimulados pela
possibilidade de conseguirem não apenas terras, como também benefícios sociais do governo brasileiro (bolsa família, cestas básicas etc).
Em tempo:
a) Tentei falar com a senhora por telefone nos escritórios do CTI em Brasília e em São Paulo. Como me disseram que a senhora estava viajando e não me forneceram o número do seu celular, tomei a liberdade de enviar-lhe as questões por e-mail
b) Peço-lhe que, por favor, me responda com urgência, pois a matéria deverá ser fechada esta semana.
Meu e-mail é o seguinte: bhe@abril.com.br
Grato, desde já, pela atenção
José Edward Lima - Repórter/Revista VEJA

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Prezado repórter José Edward Lima
Revista Veja

Agradeço sua atenção em tentar me localizar para elaborar reportagem sobre a demarcação da TI Morro dos Cavalos (SC). Estive fora toda a semana passada, incluindo os dias de carnaval, e sem celular.
Infelizmente é difícil acompanhar o cronograma apertado da imprensa no momento em que nos contatam, para colaborar em reportagens, tais como a em questão, que merecem toda a atenção e clareza quanto às informações.

A TI Morro dos Cavalos é uma das várias Terras Indígenas Guarani cujos procedimentos administrativos necessários à regularização se encontram paralisados devido à complexidade da situação fundiária envolvendo interesses particulares e políticos próprios das regiões em que estão situadas. Assim, pela relevância do assunto seria necessário discorrer com maior profundidade para esclarecer aspectos que constam nas questões que me foram direcionadas, de modo que a matéria seja informativa ao leitor. Cabe-me apenas, neste momento, fazer breves
referências sobre o teor das questões, a título de contribuição.

Vale ressaltar que Relatório de Identificação de Terras Indígenas é um trabalho de natureza diversa à de matéria jornalística, tanto em termos metodológicos quando de objetivos. O primeiro implica em estadias prolongadas no campo e pesquisas minuciosas que acarretam
implicações no futuro de comunidades indígenas e o segundo tem a tarefa não menos importante de informar corretamente a população sobre questões relevantes e atuais.
Como o senhor deve ter se inteirado, a elaboração do Relatório deve seguir as normas definidas pela portaria n.º 14 do MJ que regulamenta o parágrafo 6º do artigo 2º do decreto n.º 1775/96. Requer a realização de pesquisas etnográficas que envolvem levantamentos genealógicos, investigação de terminologias, sistemas de parentesco, de formas próprias de organização social, estudos da cosmologia, além de levantamentos da história oral, de registros documentais, do
conhecimento da bibliografia especializada, e de procedimentos criteriosos para o levantamento de dados ambientais referentes às áreas de uso da comunidade indígena. Tais estudos devem ser executados por um Grupo de Trabalho constituído por profissionais de áreas diversas com qualificação profissional, formação acadêmica, experiência acumulada de trabalho, coordenado por antropólogo especializado, e, em todas as etapas, deve contar com o acompanhamento
e a participação ativa da comunidade em questão.
Devo esclarecer ainda que os referidos estudos exigem, não apenas dedicação e tempo da equipe, mas alcançarão maior eficácia e exatidão quando realizados por antropólogo com conhecimentos sobre a língua indígena. Fato que não deve ser menosprezado é que o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos foi aprovado pela comissão de análise da FUNAI, tendo o parecer conclusivo publicado no DOU em dezembro de 2002, as contestações então apresentadas foram devidamente refutadas pela FUNAI no prazo estipulado pelo decreto n.º 1775/96, e o processo encaminhado finalmente à aprovação do Ministro com o parecer favorável da assessoria jurídica do Ministério da Justiça.
Como o senhor deve ter constatado no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos, produzido entre os anos de 2001 e 2002, a aldeia Morro dos Cavalos, como outras aldeias Guarani, se insere na rede de relações de consangüinidade e de afinidade que integram parentelas e grupos residenciais dispostos em diferentes localidades nas regiões sul e sudeste do Brasil (do RS ao ES), em Misiones na Argentina, no nordeste do Paraguai, o que pode Ser verificado a partir dos dados genealógicos coligidos em campo. Estas relações definem o território ocupado pelo povo Guarani, tal como testemunharam seus primeiros cronistas (vide relatório), muito antes das classificações vigentes na etnografia atual, e antes mesmo da
definição das fronteiras nacionais que vieram sobrepor-se aos territórios indígenas. Portanto é comum encontrar nas aldeias Guarani (tanto no Brasil como na Argentina ou no Paraguai) indivíduos e/ou famílias que moraram ou nasceram em diferentes Estados nacionais. A complexa dinâmica de mobilidade Guarani não se fundamenta tão rudemente em critérios essencialmente utilitaristas (programas assistenciais, políticas públicas e legislações favoráveis), lembrando que enfrentam dificuldades enormes em todas as unidades administrativas nacionais (províncias, estados, departamentos) estabelecidas no seu território, não sendo atualmente o Brasil um modelo ideal. (São notórios as violências impingidas aos Guarani no Mato Grosso do Sul, em Ocoí no paraná, em Araçaí em Santa Catarina, além da paralisação dos processos demarcatórios e das ações judiciais no litoral). Desconsiderar a tradicionalidade da ocupação Guarani na TI Morro dos
Cavalos seria o mesmo que ignorar a ocupação tradicional deste povo nas áreas de domínio da Mata Atlântica nas regiões sul e sudeste, onde travaram relações com tantos outros grupos indígenas. É pois um contra-senso reconhecer o povo Guarani, como um povo que manteve idioma, religião e conhecimentos profundos sobre a flora e a fauna da Mata Atlântica, e não reconhecer sua ocupação tradicional em nenhuma das terras que ocupam atualmente. Torna-se sim importante, neste momento, levantar quais os interesses que pesam sobre as terras ocupadas pelos Guarani, uma vez que, de modo extemporâneo, se buscam argumentos de qualquer tipo para tentar descaracterizar a tradicionalidade de sua ocupação em todas elas.
Diversamente do que me foi atribuído, enquanto autora do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos, não afirmo "que a região da Serra do Tabuleiro, especificamente o Morro dos Cavalos é território original dos Mbya", e sim que os Guarani ocupam toda a área pleiteada tradicionalmente.
Haveria que discorrer sobre termos e conceitos empregados corriqueiramente de modo errôneo que remetem a sentidos e significados distorcidos. O Relatório deixa claro a partir dos depoimentos prestados pelas famílias indígenas que a comunidade elegeu apenas partes vitais das áreas ocupadas por seus ascendentes e antigos moradores, áreas que inclusive transcendiam os limites identificados entre 2001 e 2002. Conforme afirmam os Guarani, antigamente não haviam fronteiras nem a necessidade de definir limites.
Cumpre ainda notar que os povos indígenas não são meros objetos que são colocados em aldeias, ao sabor dos desejos de antropólogos e nem estes possuem interesses particulares nas Terras Indígenas. Ao contrário procuram cumprir uma tarefa, cada vez mais difícil, de ampliar o entendimento e compreensão sobre outros povos e sociedades cujo reconhecimento dos direitos históricos territoriais torna-se imprescindível para continuarem vivendo. A desconsideração de formas próprias de expressão, de organização social e de uso do espaço durante os processos de reconhecimento oficial dos direitos territoriais indígenas conduz a equívocos e a práticas discriminatórias e racistas que resultarão em violências irreparáveis para os índios, como o foram as repetidas invasões e práticas predatórias de suas terras, as sistemáticas expulsões e genocídio
cometidos contra os índios desde o início da colonização. Já não é mais possível, nos dias atuais, negar aos índios a condição de sujeitos de sua própria história.

Para um tratamento adequado da reportagem recomendamos a leitura do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos, com atenção na carta elaborada pelos índios às autoridades justificando os limites escolhidos; os ofícios da comunidade encaminhados ao Ministro da Justiça, a integra do documento "Decisão do TCU sobre Br 101 trecho Morro dos Cavalos"; Análise Jurídica Do Despacho Gab/CJ N.° 175 / 2005 da Consultora Jurídica Substituta do Ministério da Justiça, elaborada pela assessoria jurídica do CIMI. Além disso seria importante a consulta a outros profissionais especializados que acompanham o processo de regularização da TI Morro dos Cavalos e que podem contribuir para a qualidade da reportagem.
Atenciosamente,

Maria Inês Ladeira
Centro de Trabalho Indigenista - CTI
www.trabalhoindigenista.org.br

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