Comunidades Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul sobrevivem em situação degradante e na luta pela terra sofrem os mais diversos tipos de violência
Brasil de Fato 05/04/2010
Cleymenne Cerqueira / Maíra Heinen, de Dourados (MS)“A gente vai perdendo a esperança e já não sabe mais a quem recorrer”. A frase de Bráulio Armoa, liderança Guarani Kaiowá da comunidade Kurusu Ambá, foi dita em meio a lágrimas de desespero e calou fundo no coração de quem o escutava. Alguns choraram e perceberam claramente que a causa não é perdida, mas que a luta é realmente desigual.
Kurusu Ambá foi umas das comunidades indígenas visitadas pelos membros do Conselho do Cimi em Mato Grosso do Sul, no mês de março. A luta pela terra tradicional da comunidade se traduz em tristes números. “Recentemente tivemos quatro companheiros baleados e dois mortos. A gente então resolveu formar uma comissão de lideranças porque se matam um líder, já temos outros para tomar a frente”, ressaltou Armoa. A impressão é de uma atitude pessimista, mas que na realidade é de desespero.
Em seu relato, Bráulio conta que mais um despejo está para ocorrer. À época da visita, a Polícia Federal havia dado prazo de dez dias para que desocupassem o local. “O juíz deu a eles a reintegração de posse porque não olhou para nossa história e para nosso povo. Nós corremos atrás da terra porque ela é vida e nós amamos a vida”, afirmou. A comunidade não tem para onde ir e se nega a voltar para a beira da estrada, onde moram outros povos da região, sujeitos a todo tipo de violência, atropelamentos, discriminação e até mesmo alagamentos.
Esperança
Apesar do histórico de violência e de toda a apreensão, os indígenas não perdem a alegria em receber os visitantes. As crianças riem, correm, agradecendo a visita. Os anciãos dançam e cantam músicas tradicionais. Da mesma forma acontece em Laranjeira Ñanderu. Acampados à beira da BR-163, que liga Campo Grande a Dourados, os Guarani transmitem uma grande alegria de viver, como uma esperança sempre acesa de retornar à sua terra tradicional.
Mas o acampamento fala por si. São cerca de 40 famílias, aproximadamente 130 pessoas vivendo perto de uma rodovia movimentada. O espaço fica totalmente alagado a cada chuva que cai. Nos barracos, as roupas se amontoam em cima das camas, pois não têm onde ficar. Em todo o canto, inclusive dentro dos barracos, o chão é de barro, uma lama que começa a secar depois da trégua da chuva. Mais à frente das casas improvisadas, uma espécie de lagoa se formou, atraindo todo tipo de inseto, mosquitos, sanguessugas, doenças. Nos dias de sol, os indígenas suportam temperaturas que ultrapassam os 50 graus sob as lonas pretas; do lado de fora quase não há sombra. Como ainda descobrir sorrisos diante deste cenário? Com os indígenas, os sinais de esperança são festejados.
Situação desumana
No dia 19 de março, uma sexta-feira, a comunidade Laranjeira Ñanderu recebeu muita gente que queria conversar e conhecer sua realidade. Entre os visitantes, o bispo do Xingu e presidente do Cimi, dom Erwin Kräutler, e o Secretário Geral da CNBB, dom Dimas Lara Barbosa. Também estiveram o procurador da república no Mato Grosso do Sul, Marco Antônio Delfino, e coordenadores de vários regionais do Cimi. Todos foram recebidos com dança típica e alegria, clima que deu lugar à tristeza e à tensão, quando começaram as falas.
O cacique Zezinho (José Barbosa de Almeida) relatou o histórico de despejo, falou da terra onde antes viviam tranqüilos, caçando, pescando. “Lá tinha tudo que a gente precisava. Tinha caça, mel, lugar para fazer roça, fruta. Agora a gente depende de cesta básica, e nem é a comida que a gente comia”, ressalta. Os líderes questionam sempre quando é que poderão sair dali. “Aqui a gente não tem vida, estamos correndo risco de pegar doenças toda hora. Quando choveu bastante, toda a água suja se misturou com a água limpa dos poços que a gente tinha furado e começamos a beber água suja também. Foi um surto de diarréia aqui!”, relata.
Depois de ouvir os relatos, dom Dimas saiu com Farid – outra liderança da comunidade – para conhecer o acampamento. Num dos barracos, uma senhora de 97 anos permanecia sentada numa rede, onde fica quase todo o dia. “Ela quase não anda, fica aqui nesse calor o dia inteiro”, explicou a filha. Mas a anciã ficou alegre ao receber a visita, sem nem mesmo imaginar o quanto a situação tinha chocado o bispo. “A situação deste acampamento é desumana!”, disse o representante da CNBB.
Eu morro pelo meu direito
No sábado pela manhã, o grupo partiu para visitar mais duas comunidades. Na primeira, Guyraroká, houve dança na casa de reza; uma recepção de muita alegria. Ambrósio Vilhalva, um dos líderes presentes, começou a relatar os problemas porque passam os indígenas de uma forma mais ampla. Falou de Xicão Xukuru e de sua amizade por ele. Também ressaltou a questão da terra. “Os fazendeiros pedem indenização para uma terra que nem é deles. Onde está o nosso direito? O índio alguma vez foi indenizado pelo o que ele sofreu? Eu não vendo, não troco, não empresto e não dou o meu direito!”, afirmou.
Familiares e amigos de dois indígenas que foram brutalmente retirados do convívio de sua comunidade foram a Guyraroká acompanhar a visita do Cimi. Na ocasião eles puderam externar o sofrimento pela ausência dos companheiros e também pela omissão do Estado em investigar e dar respostas concretas sobre o que aconteceu aos dois jovens: Rolindo Vera, desaparecido há cinco meses, e Jenivaldo Vera, cujo corpo foi encontrado. Os dois foram seqüestrados e espancados durante retomada de sua terra tradicional, em outubro do ano passado.
Os pais e a esposa do professor Rolindo Vera relataram o sofrimento de uma família pelo desaparecimento de mais um que morreu por sua comunidade e por seus direitos. No relato dos pais, o desespero e as lágrimas vieram à tona. “Nenhuma justiça foi feita, não temos nenhuma notícia para acalmar nosso coração”, disse o pai. “Com nosso sobrinho (Jenivaldo Vera) aconteceu a mesma coisa: não se sabe se ficou em cativeiro, como o levaram, mas o corpo dele foi encontrado...o do nosso filho não”, finalizou. A esposa, que carregava nos braços a filha que nasceu logo após o desaparecimento do professor, implorou ajuda em sua fala. “Peço ajuda aos senhores, pois estou passando necessidade sem o pai dos meus filhos. Ainda não posso trabalhar porque tenho criança pequena.”
Uma das professoras de Rolindo, Leda de Souza, também fez um depoimento emocionado. “O Rolindo era um professor que não esperava certificado para fazer a diferença! Ele foi dizendo que ia voltar e os alunos e professores ainda aguardam a sua volta”. Ela terminou sua fala pedindo providências para encontrar o professor e para que não se deixe passar despercebido mais esse caso de violência contra os indígenas do estado: “Não deixem o Rolindo ficar perdido nessa imensidão, ele não pode ser um pai ausente!”.
Vivendo num chiqueiro
Em Pasu Piraju, Carlitos, um senhor de 76 anos de idade e muitas lutas, nos recebeu eufórico. Depois de cantar com os parentes que chegavam, ele relatou seus combates, defendendo os direitos indígenas. “Nós índios precisamos nos unir!”
Ao falar de sua terra, não se mostrou feliz. “Aqui vivemos como escravos, porque não podemos sair da terra. Vivemos num chiqueiro de 40 hectares para muitas e muitas famílias”, declarou. Ele conta que na cidade sempre dizem que ‘índio não quer trabalhar’, o que ele logo rebate. “Como podemos trabalhar sem terra? Para trabalhar precisamos de espaço, precisamos plantar roça”, disse.
Apesar de verificar muitas situações de desespero, os missionários do Cimi voltaram para casa sabendo que tinham uma missão maior: divulgar para o mundo que os Guarani precisam ter voz e vez e buscar alternativas para reforçar a luta desse povo por suas terras tradicionais.
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Matheus Acosta
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"Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem"
Rosa Luxemburgo