Diante da atual situação de nossa universidade e da pouca informação que tem chegado ao conjunto da comunidade universitária (ora por omissão, ora por mascaramento da realidade, ora por passividade deliberada e consentida, ora por mal-fé mesmo) é dever de todos aqueles comprometidos com a educação pública se levantar, senão para sermos ouvidos pela administração central de nossa instituição, no mínimo para levantarmos uma voz de resistência com coragem para defendermos nossas convicções. Não é possível que esses últimos anos de aprofundamento da cooptação, do clientelismo, do conservadorismo, do compadrismo, tenham levados os mais íntimos desejos de um povo a pó! Historicamente, a intelectualidade residente nas universidades públicas brasileiras tem sido parte importante de uma voz intransigente de defesa do patrimônio brasileiro! Não podemos mais nos calar!
15 anos depois da morte de Florestan Fernandes, só nos resta reivindicar seu “radicalismo intelectual” e colocá-lo a serviço de uma força obstinada capaz de resistir às práticas anti-populares e anti-nacionais colocadas na esteira de nosso momento histórico.
Se equivocaram aqueles que pensavam ter salvado, ou pelo menos afastado, a universidade do fluxo destrutivo da mercantilização da educação com a eleição de um governo, que inauguraria o “Século XXI” e colocaria a universidade em outro ciclo. O “problema da universidade” assume uma “crise profunda” na atual conjuntura, e se durante muitos anos a privatização da maioria das universidades federais e estaduais não se refletiu claramente num processo de cobrança de mensalidades (muito embora já caminhe também nesse sentido através de taxas) o mesmo não se pode dizer sobre a produção de ciência e tecnologia. Está claro que a iniciativa privada é incapaz de desenvolver uma base autônoma para suas próprias inovações e necessita abocanhar o parco recurso público destinado às universidades para seus fins e objetivos particularistas.
Os últimos acontecimentos a nível nacional
Em menos de dois meses a UFSC tem sido bombardeada de maneira silenciosa, uma ofensiva que ocorre à nível nacional, tendo conseqüências globais e específicas ao mesmo tempo.
Em 19 de Julho desse ano, foi aprovado o chamado “pacote da autonomia”, composto por três decretos (n° 7.232, 7.233, 7.234) e uma medida provisória (n °495). O governo federal, a partir desta data, permite às universidades e seus respectivos hospitais universitários “a abertura de créditos suplementares” para o “reforço de dotações orçamentárias” através do “superávit financeiro de receitas próprias, convênios e doações” (art. 2, decreto 7.233). Em suma, dota as universidades de “autonomia financeira” e não de “autonomia gestão financeira” como se quer fazer crer no art. 1°. Isso significa que as universidades poderão buscar recursos na iniciativa privada, inclusive através da cobrança de mensalidades. Mas não pára por aí. Os recursos públicos da União serão destinados às universidades de acordo com a “produtividade”, segundo critérios de “número de registro e comercialização de patentes” (inciso IV, art. 4). Ou seja, a universidade que mais conseguir privatizar a sua produção científica, que mais vender suas pesquisas, seu conhecimento, que mais promover transferência de tecnologia para a iniciativa privada, mais receberá recursos públicos para injetar na iniciativa privada! É uma inversão! A fratura social terá sua fissura aprofundada na educação e as universidades de menos “prestígio” terão seus orçamentos públicos progressivamente reduzidos por não estarem dentro do “padrão de qualidade” instaurado também pelo Sinaes (art. 4 Inciso VI), transformando-se em meros “centros de ensino”, “escolões” como muitos tem chamado. Acompanhada da ofensiva ideológica, os reitores das universidades pretendem entrar nessa “corrida” que já inicia em pé de desigualdade. A ignorância e o egoísmo dessas mentes não conseguem ver que a irmã gêmea da competição é o monopólio, e que não haverá lugar para muitos nesse pódio de “centros de excelência”. A educação pública está sobre uma estaca e eles pretendem chutá-la para ver cair!
Esse pacote da privatização aponta ainda para o aprofundamento das relações entre a universidade pública e as fundações privadas “ditas” de apoio. Como se não bastasse a lei 8.958 de 94, que permite às fundações utilizar o quadro de servidores técnico-administrativos para suas funções “sem qualquer vinculo empregatício” (art. 4), agora poderão, além de ceder bolsas de ensino, pesquisa e extensão à estudantes e técnicos, dar bolsas de pós-graduação (art. 4 MP 495) aos pesquisadores segundo a agenda de prioridades das empresas privadas, “compartilhando” também a estrutura pública dos laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais, com essas empresas (lei 10.973) e liberando seus docentes para se transformarem em “professores-empreendedores”, que poderão se afastar das tarefas de docência para fazer pesquisa de acordo com os interesses dessas empresas (lei 10.973, art. 15), prejudicando muito a qualidade de ensino.
Exatamente no momento em que abre as portas para a iniciativa privada, ferindo a constituição brasileira da educação enquanto um direito de todos e dever do Estado, autoriza as universidades a realizar “concursos públicos para o provimento de cargos vagos” para técnico-administrativos “independentemente de prévia autorização dos Ministérios do Planejamento, Orçamento e Gestão e da Educação” (art. 2 decreto 7.232), incentivando claramente a universidade a buscar seus próprios recursos para a realização de tais concursos, desresponsabilizando o Estado.
Como forma de encobrir esses graves golpes, o dito pacote ainda cria o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES (decreto 7.234), documento que não passará de letra morta, visto que o decreto não dá nenhuma garantia além de sua breve fraseologia oportunista.
A universidade está perdendo completamente a sua autonomia didádico-científica. A produção de ciência e tecnologia, aos poucos se afasta ainda mais dos anseios científicos e tecnológicos para a construção de um país livre, que através das universidades possa contribuir com um amparo técnico, político, cultural para a realização da reforma agrária e de uma política de segurança alimentar, em contraposição ao latifúndio, ao “deserto verde”; para a realização da reforma urbana, que combata a especulação imobiliária e viabilize o direito à cidade e à moradia digna ao nosso povo; para uma produção cultural e artística capaz de exprimir a vida popular e seus anseios de forma livre e emancipadora; para plena implementação de uma saúde pública e universal, entre muitos outros exemplos. A lógica do mercado nas universidades aprofunda o caráter permanentemente dependente e subdesenvolvido de nossa nação. A universidade que sonhamos é uma universidade popular, tanto na forma quanto no seu conteúdo, que possa canalizar o potencial criativo dos jovens e dos melhores filhos do povo, que aponte para a construção de novas relações sociais de forma crítica à desumanização e a exploração e opressão, que combata o estado autocrático brasileiro e aponte para uma verdadeira democracia de massas.
As conseqüências locais
Junto a essas medidas nacionais, a privatização na UFSC anda a passos largos.
No mesmo mês de aprovação do pacote da privatização a UFSC aprova as taxas acadêmicas (Resolução Normativa nº. 03/CC, de 05 de julho de 2010), processo que já anda pelos bastidores da universidade há pelo menos 10 anos, em negociação com o Ministério Público Federal. Parecem ter encontrado o momento propício, principalmente pela fragilidade do movimento “personificada” nas diretorias das três entidades representativas de suas categorias. As taxas antes propostas pela universidade incluíam taxa de matrícula, mas segundo o MPF ela era “ofensiva à gratuidade do ensino”. Mas agora que nenhuma delas compromete a gratuidade do ensino (!) (revalidação de diploma de cursos de graduação expedidos por instituições de ensino superior estrangeiras – R$ 2.000,00; reconhecimento de diploma de curso de pós-graduação expedido por instituições de ensino superior estrangeiras: mestrado – R$ 1.200, doutorado – R$ 1.800,00; registro de diploma expedido por outras instituições de ensino superior do Estado de SC: a) l.ª via - R$ 150,00; b) 2.ª via - R$ 300,00; FI – R$ 100,00; matrícula em disciplina isolada – R$ 50,00; 2.ª via de diploma de graduação ou pós-graduação - R$ 300,00; entre outras) elas se tornaram... EDUCATIVAS! Que maravilha! Será que eles poderão explicar porque a proposta de valor da “taxa educativa” de Frequência Insuficiente subiu de R$ 20,00 em 2000 para R$ 100,00 em 2010 (comparar Resolução Nº 110/CC, de 14/11/2000 com a atual)? Mas vale lembrar que o art. 206 da constituição não só garante a “gratuidade em estabelecimentos oficiais”, mas também “igualdade de condições de acesso e permanência”, de modo que qualquer taxa fere esse princípio, pois as condições de permanência se tornam desiguais. Além do mais caberia questionar qual critério objetivo para tal cobrança, já que as bolsas não aumentam a pelo menos três anos, o que faz com que boa parte dos estudantes tenham que conciliar trabalho com estudos para se manter na universidade.
Ainda ocorre neste mesmo mês a aprovação do ponto eletrônico de cima para baixo, sem qualquer discussão da proposta dos servidores de dois turnos contínuos de 6 horas (o que é amparado por lei) para manter a universidade mais tempo aberta à comunidade.
Mas mais coisa ainda está por vir. No próximo Conselho Universitário estará em votação uma mudança no estatuto da UFSC. A mudança estatutária trata de dois artigos, Art. 84 – Do Patrimônio e Art. 86 – Dos Recursos, “a fim de dar cumprimento ao disposto na Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004”, a Lei de Inovação Tecnológica.
A nova redação do art. 84 prevê um acréscimo:
“Art. 84 – O patrimônio é constituído:.........
VI – pelos direitos de propriedade intelectual.
Parágrafo Único – A Universidade poderá licenciar ou ceder os seus direitos de propriedade intelectual”.
E para o art. 86 é acrescentado mais uma fonte de recursos:
Art. 86 – Os recursos da Universidade serão provenientes de:
.......
VIII – Royalties, participações e transferência de tecnologia ou propriedade intelectual”.
Tudo isso já vem ocorrendo na prática e o “museu de grandes novidades” se tornará “legal”. Encastelados em suas torres de marfim, em suas fundações, meia dúzia de “professores-empreendedores” lucram à custa do povo brasileiro que sustenta a universidade pública. A UFSC se tornará uma empresa e a educação “direito de todos” não será mais que um mercado de diplomas.
De nossa parte
Há aqueles que dizem que isso nada tem a ver com o cotidiano da comunidade universitária, e propõem um “novo método” de amaciar as consciências para num futuro muito distante podermos fazer uma discussão “tão complexa”. As cartas estão na mesa: os vende-pátria de um lado, amparados pela política da reitoria e do governo federal e pelos seus interesses estreitos e privatistas; e aqueles que com suas próprias consciências lutarão incansavelmente pela sua emancipação, para que a ciência e a tecnologia sejam destinados à resolução dos problemas do povo e não ao lucro. A luta por uma universidade popular é uma necessidade histórica, e ela tragicamente terá que ser efetivada através das contradições, das ruínas da universidade que conhecemos. Nesse jogo não tem espaço aqueles que pretendem simplesmente se manter na estrutura, pois as formas de luta serão diversas.
Já é hora de os estudantes, técnicos e professores se levantarem novamente e lutar pelo que é nosso.
Fausto
Arquitetura e Urbanismo
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