AS PESSOAS E AS COISAS
A chuva fina deu lugar à tempestade; até trovões rolavam no céu. Poucas fogueiras resistiam àquela água toda; uma e outra lanterna mostravam a azáfama que havia por tudo. Montes de coisas e montes de pessoas eram cobertas por lonas de plástico, quando dava – pois muita gente e muitas coisas estava mesmo era se molhando impiedosamente. Mesmo com tanta chuva, depois de um tempo infinito, a barra do dia acabou começando a se formar, e houve um momento em que já se conseguia distinguir vultos, montes, toldos – e impressionava-me com aquelas pessoas que ficavam de pé, firmemente segurando alguma estaca ou alguma ponta de uma lona que cobrisse um grupo inteiro. Conforme clareava eu podia distinguir os rostos daqueles postes vivos, e impressionava-me ver aqui um professor doutor; ali, uma universitária que eu imaginara que só pensava em baladas; acolá, o mauricinho que vivia de calça de vinco e camisa social – isto é, estas eram as caras de alguns dos apoiadores, pois a grande maioria eram as caras das pessoas de muitos filhos e pouca comida, aquela gente sofrida que ria de felicidade ao pensar nos seus sonhos parecidos com os sonhos do homem velho, o sonho dos canteiros vicejantes, e quando pensava neles, os olhos daquelas pessoas tremeluziam de luz!
E apesar da chuva fez-se dia, e então, impressionada, eu olhava sem conseguir distinguir muito bem o que eram montes de coisas e montes de pessoas, pois assim como montes
de coisas tinham sido cobertos com lonas de plástico, também montes de pessoas o tinham sido, e lá no chão encharcado, acocoradas ou sentadas, as pessoas resistiam aos elementos assim como vinham resistindo à fome, às humilhações, à exclusão social, desde o tempo em que tinham nascido. Às vezes eu pensava que estava olhando para um monte de coisas, e então, de repente, sob a beira do plástico uma criança ou um adulto espiava para fora, e então eu entendia que eram
pessoas, e não coisas – e ficava a pensar que os reais culpados por aquilo tudo eram os que estavam no comando do Capital, e que eram eles quem decidiam a sorte de cada um, quem deveria viver sub humanamente, como montes de coisas, embora fossem pessoas e não coisas, e que àqueles comandantes do Monstro do Capital pouco se lhe dava sequer se aquelas pessoas viviam ou morriam. Talvez morressem mesmo; faltavam só dez horas para os canhões e os tanques.
Blumenau, 16 de abril de 2007.
Urda Alice Klueger
Escritora
A chuva fina deu lugar à tempestade; até trovões rolavam no céu. Poucas fogueiras resistiam àquela água toda; uma e outra lanterna mostravam a azáfama que havia por tudo. Montes de coisas e montes de pessoas eram cobertas por lonas de plástico, quando dava – pois muita gente e muitas coisas estava mesmo era se molhando impiedosamente. Mesmo com tanta chuva, depois de um tempo infinito, a barra do dia acabou começando a se formar, e houve um momento em que já se conseguia distinguir vultos, montes, toldos – e impressionava-me com aquelas pessoas que ficavam de pé, firmemente segurando alguma estaca ou alguma ponta de uma lona que cobrisse um grupo inteiro. Conforme clareava eu podia distinguir os rostos daqueles postes vivos, e impressionava-me ver aqui um professor doutor; ali, uma universitária que eu imaginara que só pensava em baladas; acolá, o mauricinho que vivia de calça de vinco e camisa social – isto é, estas eram as caras de alguns dos apoiadores, pois a grande maioria eram as caras das pessoas de muitos filhos e pouca comida, aquela gente sofrida que ria de felicidade ao pensar nos seus sonhos parecidos com os sonhos do homem velho, o sonho dos canteiros vicejantes, e quando pensava neles, os olhos daquelas pessoas tremeluziam de luz!
E apesar da chuva fez-se dia, e então, impressionada, eu olhava sem conseguir distinguir muito bem o que eram montes de coisas e montes de pessoas, pois assim como montes
de coisas tinham sido cobertos com lonas de plástico, também montes de pessoas o tinham sido, e lá no chão encharcado, acocoradas ou sentadas, as pessoas resistiam aos elementos assim como vinham resistindo à fome, às humilhações, à exclusão social, desde o tempo em que tinham nascido. Às vezes eu pensava que estava olhando para um monte de coisas, e então, de repente, sob a beira do plástico uma criança ou um adulto espiava para fora, e então eu entendia que eram
pessoas, e não coisas – e ficava a pensar que os reais culpados por aquilo tudo eram os que estavam no comando do Capital, e que eram eles quem decidiam a sorte de cada um, quem deveria viver sub humanamente, como montes de coisas, embora fossem pessoas e não coisas, e que àqueles comandantes do Monstro do Capital pouco se lhe dava sequer se aquelas pessoas viviam ou morriam. Talvez morressem mesmo; faltavam só dez horas para os canhões e os tanques.
Blumenau, 16 de abril de 2007.
Urda Alice Klueger
Escritora
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