O HOMEM VELHO
Dentro da noite de breu, quatro horas da manhã, entramos no terreno. Umas poucas pessoas já tinham entrado antes – quando o dia clareasse haveria ali 500 famílias, mais todos nosostros, os apoiadores dos mais diversos lugares. Uma chuvinha fina ensaiava engrossar, e alguns grupos já haviam acendido algumas pequenas fogueiras. Alguma coisa me dizia que a cachoeira ficava lá para aquele lado, e então fui para lá, e parei na última fogueira que havia naquela direção. Alguns homens haviam estendido uma lona e feito um precário abrigo, e me abriguei junto deles, a me informar onde ficava a fonte d´água.
- Alguém sabe me dizer que terra é esta, afinal? – era um homem velho – talvez não o fosse muito, mas a barba embranquecida, o rosto castigado pelo tempo, pela pobreza, quiçá por muitas fomes, fazia com que parecesse homem de muita idade. Na noite de breu eu o via à luz do pequeno fogo, com seu jeito de polaco, e fiquei prestando atenção. Ninguém sabia lhe responder. Ele insistia:
- Uns dizem que é terra do governo; outros dizem que é terra do exército. Mas o que faz esta soja aqui? Quem está plantando aqui? Que terra é esta?
Eu sabia que terra era aquela.
Disse-lhe que sabia.
- Esta terra era da Lumber.
O homem pensou, ponderou, me avaliou.
- Da Lumber? Meu pai falava na Lumber!
- Pois é... Era terra da Lumber...
É necessário um parágrafo, agora, para dizer quem era a Lumber, já que a maioria das pessoas não gosta tanto de História quanto eu, mas tem uma imensidão de gente que gosta de televisão, e faz pouquinho tempo que a televisão apresentou uma mini-série sobre Percival Farquhar e a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Lembraram? Pois a Lumber não era outra coisa que uma madeireira pertencente ao mesmo Percival Farquhar que construiu a Madeira-Mamoré. Como ele viveu mais de 90 anos, nem consigo fazer conta de quantas maldades foi autor.
Lá no princípio do século XX, Percival Farquhar fechou negócio com o governo brasileiro: construiria uma ferrovia que iria de São Paulo até o Rio Grande do Sul, em troca de... apenas 15 km de terra de cada lado, férteis terras cobertas de centenários pinheiros (aqueles que a gente chama de pinheiro do Paraná, a Araucária brasiliensis). Quinze de cada lado da uma larguíssima faixa de 30 quilômetros, pejada de boa madeira, uma loucura de pinheiros a serem cortados e embarcados para o exterior, caso a ferrovia fosse em linha reta – só que Percival Farquhar mandou construí-la completamente cheia de curvas, o que aumentou muitíssimo a área a tomar posse. Nessa coisa de posse, no entanto, havia um pequeno entrave: morava gente naquela terra. Pelos séculos afora sempre um pouco de gente foi entrando pelos sertões do Brasil, e lá foi tendo filhos e se multiplicando, e aqueles pinheirais, 400 anos depois de Cabral, estavam cheios de pessoas que viviam de pequenas agriculturas e criação de um pouco de gado. Percival Farquhar, então, criou a Lumber, e ela foi a encarregada de dar sumiço naquela gente. Primeiro, o povo foi ameaçado, amedrontado, e um bocado de gente acabou caindo fora – quem resistiu, acabou morrendo. O requinte da violência chegou a tal ponto que a Lumber importou creio que duas centenas (já não lembro exatamente o número) de pistoleiros, aqueles que a gente chama de caubóis e que costuma ver em filme de bandido e mocinho, e eles vieram inclusive com seus cavalos de arreios enfeitados de prata. Quem não se amedrontou o suficiente para correr, morreu na pontaria dos caubóis que falavam inglês, e a Lumber acabou "limpando" as terras. Resultado: uma guerra que seria dolorosamente lembrada no futuro, a do Contestado, que durou de 1912 a 1916, queimou 9.000 casas e matou 30.000 pessoas, sendo civis 90% dos mortos.[1] Até aviação de guerra foi usada, pela primeira vez no mundo, naquela região. Portando, o homem velho, agora, se arrepiava ao lembrar do que o pai dele contava – ele decerto sabia o quanto aquela terra estava impregnada de sangue, como ela havia sido tirada do povo um dia! Fiz mentalmente um cálculo: estávamos a 6,5 km da estrada de ferro – portanto, ali era, sem nenhuma dúvida, antiga terra da Lumber.
Quando a Lumber se fora, tão pejada e pesada de ouro quanto um verme gordo, que já quase não consegue mais se arrastar de tão pesado, aquela terra ficara para o governo brasileiro. No fim dos anos cinqüenta, Juscelino Kubitschek a passara, por decreto, para o Exército, que por algum tempo andou por lá, usando-a como campo de exercícios e fazendo mais um bocado de maldades com quem morava ali por perto. Tem ações de monte na justiça, desde então, para confirmar amplamente o que aqui digo, bem como outras barbaridades que vou pular, pois senão vou cansar o leitor.
O fato é que por duas vezes o povo brasileiro já fora expulso daquelas terras à força, e o fato é que agora estava voltando, mas o homem velho estava inconformado:
- Se é do Exército, quem é que está plantando aqui? Olha, olha aqui, dona, veja a soja! – e munido de uma tocha feita de um pau de lenha, ele iluminou o chão e, como agricultor conhecedor que era, arrancou um punhado de ramos rasteiros de tão pisoteados, onde até eu reconheci a soja. Fiquei pasma, sem saber explicar nem para mim: se a terra era do Exército, quem plantava agricultura de rico nela? Há pouco vi fotos que foram tiradas lá depois que o dia amanheceu, e não há dúvida quanto à plantação de soja naquelas terras. Decerto que o Exército não fica mandando soldados lá para cultivar a terra – haverá algum oficial arrendando a terra para fazendeiros ricos produzirem a baixo custo? Eu acho que o Exército deve muitas explicações a nós, brasileiros – inclusive sobre aquela plantação de soja. Então para rico não há canhão, não há tanque, não há tiro, não há terrorismo? Pior é que esta é uma história de verdade! Senhor ministro, há que sabermos o que se passa lá!
A soja na mão, a indagação na testa, de repente o rosto do homem velho suavizou-se, e à luz da tocha pude ver o sonho bailar nos olhos azuis dele. Do bolso de dentro do casado ele tirou um pacotinho de nada, coisa que cabia na palma da mão.
- Dona, sou horticultor. Se esta aqui é mesmo terra do Exército, então decerto a gente vai poder ficar. Veja estas sementes – parecia tão pequeno aquele pacotinho! – São sementes de repolho japonês. Tem aqui 1.900 sementes. Quando amanhecer, vou começar a plantá-las. Vão ser 1.900 repolhos em pouco tempo! - e ele era todo brandura e emoção ao pensar nas suas carreiras de repolho crescendo! Emocionei-me também, pois emoções assim lindas mexem com a gente. Como poderia pensar que 12 horas depois aquele homem que sonhava com canteiros cheios de alimento estaria diante de tanques, sob a mira de canhões? Como é que plantador de soja podia, e horticultor pobre não podia? Como é isto, heim,
senhor ministro? Como é, heim, heim?
Blumenau, 16 de abril de 2007.
Urda Alice Klueger
Escritora
Dentro da noite de breu, quatro horas da manhã, entramos no terreno. Umas poucas pessoas já tinham entrado antes – quando o dia clareasse haveria ali 500 famílias, mais todos nosostros, os apoiadores dos mais diversos lugares. Uma chuvinha fina ensaiava engrossar, e alguns grupos já haviam acendido algumas pequenas fogueiras. Alguma coisa me dizia que a cachoeira ficava lá para aquele lado, e então fui para lá, e parei na última fogueira que havia naquela direção. Alguns homens haviam estendido uma lona e feito um precário abrigo, e me abriguei junto deles, a me informar onde ficava a fonte d´água.
- Alguém sabe me dizer que terra é esta, afinal? – era um homem velho – talvez não o fosse muito, mas a barba embranquecida, o rosto castigado pelo tempo, pela pobreza, quiçá por muitas fomes, fazia com que parecesse homem de muita idade. Na noite de breu eu o via à luz do pequeno fogo, com seu jeito de polaco, e fiquei prestando atenção. Ninguém sabia lhe responder. Ele insistia:
- Uns dizem que é terra do governo; outros dizem que é terra do exército. Mas o que faz esta soja aqui? Quem está plantando aqui? Que terra é esta?
Eu sabia que terra era aquela.
Disse-lhe que sabia.
- Esta terra era da Lumber.
O homem pensou, ponderou, me avaliou.
- Da Lumber? Meu pai falava na Lumber!
- Pois é... Era terra da Lumber...
É necessário um parágrafo, agora, para dizer quem era a Lumber, já que a maioria das pessoas não gosta tanto de História quanto eu, mas tem uma imensidão de gente que gosta de televisão, e faz pouquinho tempo que a televisão apresentou uma mini-série sobre Percival Farquhar e a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Lembraram? Pois a Lumber não era outra coisa que uma madeireira pertencente ao mesmo Percival Farquhar que construiu a Madeira-Mamoré. Como ele viveu mais de 90 anos, nem consigo fazer conta de quantas maldades foi autor.
Lá no princípio do século XX, Percival Farquhar fechou negócio com o governo brasileiro: construiria uma ferrovia que iria de São Paulo até o Rio Grande do Sul, em troca de... apenas 15 km de terra de cada lado, férteis terras cobertas de centenários pinheiros (aqueles que a gente chama de pinheiro do Paraná, a Araucária brasiliensis). Quinze de cada lado da uma larguíssima faixa de 30 quilômetros, pejada de boa madeira, uma loucura de pinheiros a serem cortados e embarcados para o exterior, caso a ferrovia fosse em linha reta – só que Percival Farquhar mandou construí-la completamente cheia de curvas, o que aumentou muitíssimo a área a tomar posse. Nessa coisa de posse, no entanto, havia um pequeno entrave: morava gente naquela terra. Pelos séculos afora sempre um pouco de gente foi entrando pelos sertões do Brasil, e lá foi tendo filhos e se multiplicando, e aqueles pinheirais, 400 anos depois de Cabral, estavam cheios de pessoas que viviam de pequenas agriculturas e criação de um pouco de gado. Percival Farquhar, então, criou a Lumber, e ela foi a encarregada de dar sumiço naquela gente. Primeiro, o povo foi ameaçado, amedrontado, e um bocado de gente acabou caindo fora – quem resistiu, acabou morrendo. O requinte da violência chegou a tal ponto que a Lumber importou creio que duas centenas (já não lembro exatamente o número) de pistoleiros, aqueles que a gente chama de caubóis e que costuma ver em filme de bandido e mocinho, e eles vieram inclusive com seus cavalos de arreios enfeitados de prata. Quem não se amedrontou o suficiente para correr, morreu na pontaria dos caubóis que falavam inglês, e a Lumber acabou "limpando" as terras. Resultado: uma guerra que seria dolorosamente lembrada no futuro, a do Contestado, que durou de 1912 a 1916, queimou 9.000 casas e matou 30.000 pessoas, sendo civis 90% dos mortos.[1] Até aviação de guerra foi usada, pela primeira vez no mundo, naquela região. Portando, o homem velho, agora, se arrepiava ao lembrar do que o pai dele contava – ele decerto sabia o quanto aquela terra estava impregnada de sangue, como ela havia sido tirada do povo um dia! Fiz mentalmente um cálculo: estávamos a 6,5 km da estrada de ferro – portanto, ali era, sem nenhuma dúvida, antiga terra da Lumber.
Quando a Lumber se fora, tão pejada e pesada de ouro quanto um verme gordo, que já quase não consegue mais se arrastar de tão pesado, aquela terra ficara para o governo brasileiro. No fim dos anos cinqüenta, Juscelino Kubitschek a passara, por decreto, para o Exército, que por algum tempo andou por lá, usando-a como campo de exercícios e fazendo mais um bocado de maldades com quem morava ali por perto. Tem ações de monte na justiça, desde então, para confirmar amplamente o que aqui digo, bem como outras barbaridades que vou pular, pois senão vou cansar o leitor.
O fato é que por duas vezes o povo brasileiro já fora expulso daquelas terras à força, e o fato é que agora estava voltando, mas o homem velho estava inconformado:
- Se é do Exército, quem é que está plantando aqui? Olha, olha aqui, dona, veja a soja! – e munido de uma tocha feita de um pau de lenha, ele iluminou o chão e, como agricultor conhecedor que era, arrancou um punhado de ramos rasteiros de tão pisoteados, onde até eu reconheci a soja. Fiquei pasma, sem saber explicar nem para mim: se a terra era do Exército, quem plantava agricultura de rico nela? Há pouco vi fotos que foram tiradas lá depois que o dia amanheceu, e não há dúvida quanto à plantação de soja naquelas terras. Decerto que o Exército não fica mandando soldados lá para cultivar a terra – haverá algum oficial arrendando a terra para fazendeiros ricos produzirem a baixo custo? Eu acho que o Exército deve muitas explicações a nós, brasileiros – inclusive sobre aquela plantação de soja. Então para rico não há canhão, não há tanque, não há tiro, não há terrorismo? Pior é que esta é uma história de verdade! Senhor ministro, há que sabermos o que se passa lá!
A soja na mão, a indagação na testa, de repente o rosto do homem velho suavizou-se, e à luz da tocha pude ver o sonho bailar nos olhos azuis dele. Do bolso de dentro do casado ele tirou um pacotinho de nada, coisa que cabia na palma da mão.
- Dona, sou horticultor. Se esta aqui é mesmo terra do Exército, então decerto a gente vai poder ficar. Veja estas sementes – parecia tão pequeno aquele pacotinho! – São sementes de repolho japonês. Tem aqui 1.900 sementes. Quando amanhecer, vou começar a plantá-las. Vão ser 1.900 repolhos em pouco tempo! - e ele era todo brandura e emoção ao pensar nas suas carreiras de repolho crescendo! Emocionei-me também, pois emoções assim lindas mexem com a gente. Como poderia pensar que 12 horas depois aquele homem que sonhava com canteiros cheios de alimento estaria diante de tanques, sob a mira de canhões? Como é que plantador de soja podia, e horticultor pobre não podia? Como é isto, heim,
senhor ministro? Como é, heim, heim?
Blumenau, 16 de abril de 2007.
Urda Alice Klueger
Escritora
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